A VIDA DE FAMÍLIA -
Crises
Ao celebrarmos a Festa da Sagrada
família, fico com muita preocupação em relação ao costume que se está criando
em muitas famílias da nossa sociedade atual. Refiro-me às estratégias que se
adotam para se lidar com as crises típicas do matrimónio. Parece que alguns
casais diante de certas situações não se lembram mais que até o matrimónio mais
feliz está sujeito a crises, que precisam ser vistas como um fenômeno de
crescimento do amor conjugal e não como razão para a separação. Um matrimónio
cujos cônjuges jamais discordam até pode ser preocupante. Será que eles são iguais
em tudo ou uma das partes está se sobrepondo à outra, e que a outra por sua vez
não se revela ao outro com sinceridade? Penso que dependendo de como será
vivida, cada crise, mesmo a mais penosa, pode levar ao aprofundamento do amor,
à renovação da convivência entre os esposos e ao fortalecimento cada vez maior
do matrimónio.
Por livre vontade
Antes de tudo, talvez seja
preciso compreendermos que o matrimónio não é “questão de sorte”, como alguns
costumam dizer. Ele é fruto de uma escolha livre que cada um fez. É verdade que
há esposos que se escolheram apressadamente e por razões pouco consistentes,
mas nunca podemos esquecer que, através do Sacramento do Matrimónio, Deus concede
aos esposos uma graça que ratifica esta escolha e “aumenta” a semente da
afeição que um dia tiveram um pelo outro. Esta semente, que os moveu a subir ao
altar, pode, pela graça de Deus, desabrochar e crescer como uma grande árvore
cheia de frutos e frondosos galhos, capazes de fazer sombra e “abrigar toda
espécie de pássaros” (Mt 13,32).
Esta livre escolha não é uma
“cruz” para se carregar pela vida como um “fardo”. A cruz do matrimónio vem de
fora, do ambiente. O companheiro, esposo ou esposa jamais deveria ser
considerado como “minha cruz”. A cruz pode ter suas causas no comportamento do
outro, mas não se identifica com ele. O outro é uma bênção, um presente de Deus
na vida do cônjuge; o outro é um mistério, um desafio, o instrumento que se
precisa para se chegar a Deus, que é “felicidade suprema”!
Por isso, nos momentos de crise
de nada adiantam as agressões, as lamentações ou outras manifestações
desagradáveis. Como também de nada adianta culpar a famosa “incompatibilidade
de gênios”, pois não é fácil encontrarmos pessoas absolutamente iguais. Ao
contrário de afastar, toda a diferença pode ser ajustada, ao ponto de nos fazer
funcionar como rodas dentadas de uma máquina, cuja força consiste justamente em
se ajustarem nos pontos desiguais. Se o casal se propuser a lutar e conseguir
isto, viverá um amor vitorioso sobre qualquer espécie de dificuldade e crise e
suas consequências, experimentará concretamente no matrimónio a vitória de Cristo,
e a verdadeira paz será alcançada.
A novidade
Um longo matrimónio
pode vir a atravessar muitas crises. Uma delas é a crise na adaptação física
e/ou psicológica, que pode surgir no início do matrimónio e ser superada,
entretanto pode ser camuflada durante anos, até que um dia expluda
tragicamente. Cada um dos esposos traz para o matrimónio modelos às vezes muito
fortes das relações entre os pais, de sonhos que por muito tempo alimentaram
sua imaginação, mas que não correspondem à realidade. Pretender adaptar o outro
a seus modelos ou ressentir-se com ele por isto é grande prova de imaturidade,
e razão suficiente para orar sobre si mesmo ministrando a Palavra de Deus que
diz: “Esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne!... (Gn
2,23). Por isso o homem deixa seu pai e sua mãe para ligar-se à sua mulher, e
se tornam uma só carne (Mc 10,7)”. A tua realidade é esta, o teu matrimónio, a
família que escolheste. Deixe que a “ficha caia”.
Por exemplo, as crises
financeiras, pelas quais passam os cônjuges, podem afetar seriamente a relação
conjugal, se estes não buscarem em Deus a graça para resistir às suas
consequências, e conservar a unidade. Neste momento, podem surgir acusações,
sentimentos de inferioridade ou superioridade, e a falta do dinheiro pode se
tornar o “bode expiatório” de ressentimentos antigos ou da preguiça de
dialogar.
Às vezes pensamos que a
infidelidade começa quando um dos parceiros se entrega a uma “paixão”, mas ela
pode começar bem antes, no coração, quando se começa a se fechar-se em si mesmo,
analisando os erros um do outro e desnudando-o diante de terceiros. De nada
adianta tal atitude que, além de “envenenar” o relacionamento, pode colocar a
pessoa na mão de falsos conselheiros, que infelizmente se alimentam e até se
alegram em aumentar a divisão entre os dois.
É claro que existem também
aqueles que têm boa vontade em ajudar, mas não conseguem ver que neste tipo de
confidências apenas um dos dois teve o direito de falar e na maioria das vezes
trará somente suas “razões”, pois não consegue ver as do outro. Ocorre-me um
trecho do Evangelho que nesse momento se encaixa com perfeição para prevenir os
arranhões diários que podem minar o amor dos esposos: “Por que reparas o cisco
que há no olho do irmão, e não vês a trave que está no teu?” (Mt 7,3). Hoje a
grande maioria dos profissionais em aconselhamento orientam à sondagem do
interior – “em tudo tenha sempre dúvidas sobre as tuas certezas. Perante as
razões alheias, ponha sempre em causa as tuas próprias convicções”. Por isso a
solução definitiva deveria ser sempre fruto do diálogo entre os dois. Estes
deveriam sempre remeter-se às verdadeiras motivações que os levaram à
constituição dessa família.
Outra crise bem séria é a do
envelhecimento das relações, a famosa “perda da novidade”, que pode acabar em
infidelidade. Esquecidos de que todo ser humano será sempre um mistério e uma
novidade, um ou ambos podem projetar seu próprio tédio interior no rosto do
outro, e achar que vão reencontrar a alegria numa outra companhia. Não raro,
depois de algum tempo o cônjuge que buscou uma nova aventura acabará se
encontrando com seu próprio cansaço, e queira Deus que ainda haja como
retornar, pois já terá envolvido muitos outros na sua decisão precipitada.
Valor da fidelidade
O que leva um casal, que foi
capaz de enfrentar tantos desafios juntos, a desistir num momento que deveria
ser o mais feliz e tranquilo de sua relação? Este, que seria o período da
colheita, o tempo mais rico e precioso da vida conjugal, transforma-se tantas
vezes em motivo de descaso ou implicâncias mútuas. O medo do envelhecimento, da
morte corporal também pode gerar a falsa ilusão de que uma companhia mais jovem
pode lhe trazer de volta os anos “perdidos” ou retardar um tempo tão precioso
que é a terceira idade. Gostaria de colocar aqui o pensamento de uma mulher que
viveu bem todas as fases da sua vida e certamente estava cheia de Deus quando o
externou: “Acho que as diversas etapas de nossa vida temos que vivê-las
alegremente na graça do Senhor. A velhice bem vivida é uma fonte de paz, já que
temos passado a época de maiores trabalhos, restando-nos aguardar a vinda do
Senhor para gozá-lo eternamente”.
Contudo, o trágico disso é que,
seja qual for o motivo da crise, tem ficado cada vez mais frequente a idéia de
que o divórcio é a única solução para o problema, de modo que cada um possa “ir
para o seu lado” (o que eu chamo de ‘chutá-lo para fora da casa’) como quem
desfaz um acordo de negócios.
É claro que quando a violência
física, psicológica ou moral torna um dos cônjuges um perigo para a saúde do
outro e dos filhos, a separação pode ser um meio de preservá-los, mas nunca
podemos esquecer que ela é incapaz de gerar a quebra do vínculo matrimonial,
pois o divórcio civil de nada adianta no plano religioso. Como também ela não
cura as causas da crise. Portanto se alguém está errado (mesmo separando) ele
continuará no mesmo erro e (com separação) pode piorar ainda mais. Espiritualmente,
ainda são responsáveis um pelo outro até o dia da sua morte. E mesmo que o
outro já não esteja disposto a uma reconciliação, será sempre digno do seu
perdão, do seu respeito, das suas orações, porque Jesus mereceu isto por ele na
Cruz.
Por isso, ao invés de desistir no
meio da luta, vale a pena perseverar até o fim, ou, se por acaso ocorreu a
separação, orar e esperar com paciência, pois ainda pode ser que um dia Deus
lhes conceda a graça de “casar pela segunda vez” com a mesma pessoa, o que será
um gesto humano extraordinário. Este segundo casamento, obviamente não consiste
nem requer repetição do rito matrimonial, nem o relacionamento do casal será
repetitivo (como se faz com o casamento civil), porque um homem e uma mulher
renovados estão ali, ainda mais lúcidos do que antes, dispostos a retomar sua unidade.
Mas seu “novo casamento” se beneficiará da experiência adquirida antes para que
o amor seja retomado onde houve a ruptura.
O sacramento do Matrimónio traz
consigo o remédio certo para este amor que deve crescer sempre: A oração e a
Eucaristia, que trazem o Cristo vivo para dentro deles, renovando estas graças
e multiplicando-as dia após dia. Que Jesus, nossa paz, renove ainda hoje em sua
casa o amor familiar onde este necessitar ser renovado.
Que a Sagrada família proteja os
casais de nossas comunidades.
Kaquinda Dias